sábado, 15 de março de 2014

Quantos anos de escravidão?


Dizem os entendidos que julgam e distribuem o Oscar que “12 anos de escravidão” foi o melhor filme da safra. Por acaso o assisti na quinta-feira que antecede o Carnaval, ciente dos, então, rumores de “já ganhou”. Um bom filme, sem dúvida, mas é preciso vê-lo com o pé atrás.

Já de saída, duvidei do título: como apenas 12 anos de escravidão? Não que eu ache pouco, nem uma hora sequer o seria, mas é sabido que a escravidão durou muito, muito mais, inclusive nos Estados Unidos, onde se passa o filme, na década de 1840.


Sem querer ser ‘spoiler’, já que o próprio resumo do filme assim o diz, trata-se fundamentalmente do sequestro de um jovem negro, classe média, casado e com dois filhos, músico, letrado, com vida confortável e trabalho honesto, escravo liberto, que é subitamente enganado, embebedado e assim sequestrado para ser vendido como escravo. Ele passa 12 anos nessa situação.

Exploração, maus tratos, péssimos tratos, tratos piores ainda e o que mais você já sabe e conhece do que foi esse período abominável da história humana, em qualquer parte do mundo. Tudo retratado pelo filme, sob a ótica do jovem injustamente escravizado. E é aí que precisamos focar.

Para mim, a beleza e a importância do filme estão no olhar crítico que precisamos ter sobre o todo, sobre aquele conjunto imenso de homens, mulheres e crianças que foram escravizados, não importa se sequestrados ou não, se ex-escravos ou não, para que nunca mais se repita horror semelhante.


A pungente situação de injustiça e atrocidade existiu não apenas para aquele que durante uma dúzia de anos o sofreu na pele. Isso reduziria o absurdo do cativeiro e da servidão e faria mais palatável a aceitação das terríveis consequências vindouras: discrepância enorme entre pobres e ricos, oportunidades tremendamente desiguais em termos de acesso à saúde, educação, cultura, trabalho, enfim, cidadania, para reduzir ao mínimo a análise da questão nos dias atuais.

Não estamos onde estamos por acaso. Os negros constituem hoje a maioria dos pobres, dos que têm menos anos de escolaridade, dos que disputam os empregos mais humildes e mal pagos, dos que são presidiários. E nada disso é coincidência.

Ao fim e ao cabo, e mesmo sem entrar nos meandros dos interesses econômicos que incentivaram tantas mudanças sociais, é preciso que se diga que a escravidão persiste ainda e em imensa escala, se não através do que nos foi dogmaticamente ensinado a entender como tal, através de tantas outras formas de exploração, espoliação, humilhação e falta de respeito, para citar tímidos exemplos.

Este é um filme que passa cotidianamente nas ruas de países como o nosso, quando driblamos o menino descalço que vende balas no sinal, quando desviamos nosso olhar do mendigo que dorme sob o viaduto, quando escolhemos um caminho que não nos leve aos acessos das favelas. É um filme que fingimos não ver, que preferimos não ver e, acho, que não se seria premiado pela academia não.

2 comentários:

  1. Querida Rita, sempre me perguntei sobre um fenômeno que ocorre quando "purgamos ou purificamos" algo através da arte, a dita CATARSE. É claro que não vamos generalizar, mas fico a me perguntar o porquê desse fenômeno só ocorrer em contato com a arte e não com a realidade em si. Na maioria das vezes a indignação fica apenas na sala de projeção e ao longo do caminho para a casa, remoesse mentalmente e no entanto, é só isso. Não agimos, só pensamos, nos indignamos, vociferamos com amigos, na internet, mas é só isso.

    A escravidão é uma violência cometido contra o ser. O indivíduo tem uma violência dentro de si e, as vezes, a realidade experienciada corrobora na manifestação de ações de extrema violência, como presenciamos nos linchamentos (isso apenas para ficar no âmbito de nossa atual realidade). Pessoas cujo grau de instrução é alto apoiando barbáries como essas. Tenho um eterno conflito de concepção quanto ao termo "inteligência", pois para mim ele só pode ser atribuído para pessoas que a usem para o bem e não para o mal. Usar a dita inteligência para o mal, para mim é irracional e se é irracional, não pode ser inteligência.

    Enfim, como sempre, fico saltando de galho em galho e me disperso, essa é minha natureza mesmo, me desculpe. Adorei seu post, ainda não assisti ao filme e digo a você que talvez não assista justamente porque sou terrivelmente covarde e não consigo ver essa violência nem mesmo nas telinhas. Mas quem sabe uma hora dessas não me sinta menos covarde e assista.

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    1. Obrigada, Helene, por sua participação sempre tão instigante. Esse conceito de inteligência é muito interessante, quiçá todos o adotasse. Recentemente o que me chocou deveras foi saber que a punição para os torcedores racistas da Espanha foi apenas não poderem mais assistir aos jogos nos estádios. Aqui racismo é crime inafiançável, é cadeia, e isso é o mínimo, mas lá fora, no dito 1º mundo, não é. Aí pensei em talvez usar um jegue quando eu for à terra deles, mas depois lembrei das touradas, melhor não.

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